Um poema que emociona ao retratar encontro entre Jorginho e onça no Pantanal: “Vira parte da lenda”
Redação 23/04/2025
Esse poema do biólogo Carlos Gentil Vasconcelos parece tocar fundo nas emoções e na complexidade da convivência entre o ser humano e a natureza. Ele transforma a tragédia em uma reflexão poética sobre pertencimento, respeito ao território e os limites entre o homem e o animal. A fala de “Jorginho” no verso — “Dona Onça, não sou invasor” — carrega uma tentativa de diálogo e compreensão, quase como um pedido de licença ou até de perdão.
A escolha de um tom quase lírico para retratar uma cena tão brutal também evidencia o quanto a morte dele vai além de um simples acidente: ela revela um conflito mais amplo sobre como ocupamos e nos relacionamos com ambientes selvagens. E a dúvida deixada no final — “era a mesma onça que deixou as pegadas dias antes?” — reforça o mistério e a incerteza que envolvem o caso.
Carlos publicou o texto nas redes sociais, acompanhado de uma ilustração de Jorginho sentado, bebendo algo junto da onça. Nos comentários, as opiniões estão divididas, uns internautas culpam Jorginho, outros a onça.
Veja o poema completo:
O Encontro de Jorge e a Onça
No coração quente do Pantanal,
o céu se tingia de fogo ao entardecer,
e o Sr. Jorge, de boné desbotado e alma tranquila,
tomava seu tereré à sombra do ipê-amarelo,
sentado na varanda onde o rio passava calmo.
Era homem de fala mansa, olhar atento.
Sabia decifrar pegadas no barro
e escutava o canto dos bichos como quem lê poesia.
Naquela tarde, ela apareceu.
A onça-pintada, a senhora da mata.
Olhos de âmbar, corpo de ouro e sombra.
Parou diante dele como se viesse cobrar algo antigo.
— Homem… este chão me pertence.
Antes da tua casa, teus bois, teus trilhos…
Eu era o pulso da vida aqui.
Caço pra manter o ciclo.
Sou equilíbrio, sou alerta.
Mas teu mundo aperta o meu.
Jorge suspirou, puxou um gole longo de tereré,
e respondeu com respeito:
— Dona Onça, não sou invasor.
Tô aqui faz vinte anos,
não cerquei teu rio, nem furei tua caça.
Só cuido do que posso.
Divido, não domino.
A onça o fitou fundo,
e pareceu aceitar.
Virou-se e sumiu no mato
como se nunca tivesse estado ali.
A partir daquele dia,
contam que Jorge virou mais guardião que morador.
Protegia árvores, soltava animais presos,
alertava os vizinhos:
“A floresta tem dono, e não sou eu.”
Mas os anos passaram.
E numa manhã de cheia,
encontraram a porta de sua casa aberta,
o tereré ainda gelado na guampa,
o boné pendurado num prego.
Nada fora levado.
Só Jorge havia sumido.
As marcas no chão eram claras:
pegadas de onça, duas — uma maior, outra menor.
Como se duas rainhas tivessem se cruzado ali.
Alguns dizem que foi a mesma onça,
vinda cobrar o que Jorge prometeu.
Outros falam de uma nova,
sem pacto, sem memória, sem piedade.
Mas ninguém ousa falar de tragédia.
Porque no Pantanal,
quando um homem como Jorge parte assim,
em silêncio e com marcas de bicho,
vira parte da lenda.
E à noite, quando a lua reflete no brejo,
dá pra ouvir o rugido ao longe.
E quem conhece a mata diz:
“É só a onça… ou talvez o velho Jorge, ainda vigiando.”